O desjejum



Após a noite de sono não tão tranquila, os pensamentos na viagem e em minha nova companhia, a filha do burgomestre, não paravam de vir em minha mente. Minha  preocupação era com o que viríamos a encontrar pelo caminho e não em cumprir a missão. 

Seguiríamos pela Via Romântica, uma antiga estrada construída pelos romanos (daí o seu nome) que ligava o centro do Sacro Império Romano aos pés dos Alpes que separavam o Império da República Sereníssima de Veneza. A muito nossa Ordem não fazia patrulhas pelo sul do império, deixando o sul a cargo dos Cavaleiros Hospitários, pois as lutas estavam longe da região. Nós teutônicos lutávamos ao norte, outras ordens menores lutavam à oeste contra os otomanos e outras ordens asseguravam a segurança do Império Franco à leste. O sul gozava de relativa segurança e desenvolvimento devida a prosperidades das repúblicas de Veneza e Gênova onde os comerciantes lucravam muito com as rotas comerciais que as cruzadas anteriores criaram e consolidaram. Tanto que as primeiras cruzadas foram organizadas pela Igreja com o objetivo de libertar a Terra Santa dos saracenos, enquanto que as últimas foram organizadas por príncipes em busca de riqueza e composta por nobres sem terras em busca de um feudo a governar no oriente. A mais recente cruzada foi organizada por Veneza contra os bizantinos e sua capital, Constantinopla, com quem disputavam o poder econômico na região.

A cruzada que íamos nos juntar já era a oitava, sendo esta cruzada organizada pelo rei Luis IX, que tem como objetivo combater o tirano Baibars da dinastia mameluca que devastava o Egito e ameaçava os domínios cruzados na Terra Santa. Notícias nos informava que rei Luís se dirigia para Túnis a fim de converter o emir governante da cidade e pedir que ele se juntasse a ele na luta contra Baibars. O príncipe Eduardo da Inglaterra também se uniria as forças cruzadas com seu exército e com a ajuda da Ordem do Graal. Suas forças se juntariam com as de Luís em Chipre, onde todos os cruzados se agrupariam para zarparem até Acre, capital do reino cruzado, e de lá partirem em ofensiva para o sul com o objetivo de libertar Jerusalem e o Egito.

Como esta seria uma cruzada liderada por 2 nobres de grandes reinos e seus bem equipados e numerosos exércitos, as ordens templárias menores enviaram homens para compor o exército de libertação de Jerusalem, pois era a chance de se conseguir terras e riquezas.

Minha ordem apesar de ser forte e numerosa, não quis enviar muitos homens para a cruzada, pois, na visão de nosso grão-mestre, as lutas do norte eram mais importantes e como haveriam muitas ordens envolvidas e 2 nobres de temperamento difícil, haveria o risco de muitas disputas e traições, o que poderia desgastar ainda mais a imagem da ordem.

Eu e minha companheira de viagem seriámos, portanto, os únicos representantes da Ordem Teutônica enviada para esta cruzada. Seremos uma gota de suor no banho de sangue que sempre é derramado nas cruzadas. Pior que, acredito eu, minha companhia nunca entrou em combate mortal e serei eu quem deve protegê-la.


Acordei mais cedo e meditei pedindo sabedoria à Deus para tomar as decisões certas e fazer com que minhas dúvidas e medos fossem extirpados de mim.

Fui interrompido por batidas na porta, uma das serviçais me chamou para o desjejum. Me aprontei e me dirigi até a sala de refeições. Schwanden e Nosch já conversavam e pelo sons dos homens se aprontando deduzi que o acordo fora fechado. Ao perceberem que eu havia entrado na sala, Nosch se afastou e o meu mestre veio até mim.

- Mestre, eu ainda não não conheci a menina e... - falei antes do mestre e fui interrompido com um tom de voz ríspido:

- Você mesmo disse que pouco importava ser filho ou filha. Estás pensando em desistir da missão? Pois saiba que você vai aceitá-la e isso agora é uma ordem! Dependemos dos recursos e você é o melhor homem que possuo para cumprir a viagem sem escolta!

- Sim senhor... - assenti contrariado.

Nosch novamente entra na sala e comunica:

- Meu chefe da guarda já chamou minha filha em breve ela estará aqui, me perdoem se ela não se parecer com uma donzela, é difícil criar uma menina sem a mãe por perto.

Assim que completa a frase o chefe da guarda entra na sala e diz ela precisa de um tempinho para se aprontar, Nosch bufa:

- Sempre querendo me irritar essa menina, o que mais ela quer?

- Calma Nosch, não temos pressa em partir, meus homens estão dentro do prazo. - informou Schwanden.

- Quem a criou então Nosch? Vejo que você não tem muita paciência. - indaguei

- Fui eu senhor cavaleiro. - Respondeu o chefe da guarda - por ser muito mais alta que as meninas da vila ela sofria demais, eu a defendia e como ficava difícil defendê-la sempre, decidi ensiná-la a se defender. Aprendeu tão bem que ela vê o senhor Nosch como inimigo...

- Inimigo não, apenas um estranho, um ilustre estranho. - ouvimos de uma voz feminina que vinha da porta da sala.

A figura que eu via em nada se assemelhava a qualquer uma que havia visto anteriormente. Quando afirmaram que ela tinha grande altura, não mentiram. Ela tinha cerca de 1 metro e 80 centimetros, um corpo esguio e bem proporcional. Cabelos pretos, lisos e bem curtos. Sua pele não era alva como as das donzelas, mas apesar de sua pigmentação mais curtida, que lembrava as das camponesas, isso não tirava o charme que havia em seu rosto. O olhar penetrante dela me congelou por um instante, porém ao perceber seus trajes eu não me contive e perguntei:

- O que ela tem de diferente Nosch?

Nosch também estava paralisado. Ao ouvir minha pergunta vosciferou:

- Isso é alguma piada Frieda? Mais uma tentativa sua de me tirar do sério?

- Apenas me vesti apropiadamente para receber tão ilustre visita. - respondeu Frieda sarcasticamente.

Ela estava vestida em um belo vestido longo branco, um pouco desbotado mas com rendas riquíssimas e cravejado com alguns cristais bem brilhantes. O corte do vestido acentuava sua cintura que visivelmente não era tão fina. Percebi que ela se esforçava para vestí-lo, todavia, ainda assim, ficava bonito nela.

- Esse vestido era de sua mãe é uma afronta à memória dela você vestí-lo.

- Calma Nosch, não seja indelicado na presença dos convidados. - aconselhou Henrich.

- A propósito, vejo que há uma grande comitiva aí fora, eles me levarão para onde, pa-pai? - questionou Frieda de forma irônica.

- A comitiva não frau Frieda, será herr Elmer que a conduzirá em vossa jornada. - respondeu de pronto meu mestre. apontando para mim.

- Apenas ele? Será uma curta jornada não? - espantou-se Frieda.

- Creio que não frau. A viagem será longa... - respondi

-Ah! Que bom, ficarei bem longe dessa cidade, finalmente, não meu caríssimo pai? Vou para qual convento deta vez? - indiguinou-se Frieda

- Não será convento, iremos nos juntar a uma cruzada até a Terra Santa. - respondi mais uma de suas indagações.

- Que ótimo! Porque não me enforcou logo? Ou me decapitou, pai? Vai deixar que um sarraceno faça o seu trabalho sujo herr Nosch?

- Mais respeito menina, uma cruzada a fará ver o que é a vida realmente. Vai ajudar a colocar você em seu lugar.

- Sim, e descobrir meu lugar no mundo é morrer? Pois um cavaleiro só não faz uma Cruzada. - falou apontando para mim.

- Elmer é nosso melhor cavaleiro, e vocês se juntarão aos príncipes Luís da França e Eduardo da Inglaterra na ilha de Chipre. - interrompeu Schwanden.

- Herr Nosch, já que queres me ver longe, quero partir com a minha parte da herança, pois assim caso eu morra já terei levado de ti a minha parte. - falou em tom mais brando Frieda.

- Ora, como ousa querer dinheiro? Me chantageando? Sou o homem desta casa e todos me obedecem. Você vai queira ou não, com dinheiro ou não! - disse Nosch quase aos berros.

- Herr Nosch, creio que realmente frau Frieda precise de dinheiro para a viagem, aliás não combinamos mesmo os custos da viagem dela. - ponderou o mestre Schwanden.

- Achei que já estava incluso no que paguei a vocês.

- Ah! Eles receberão pelo "serviço". Não sabia que os Teutônicos eram mercenários.

- Não somos mercenários! - defendi-me.

- É o que parece!

- Calma Frieda, aquietasse. - disse Henrich colocando as mão nos obros dela.

- Frau Frieda, seu pai doou uma quantia em dinheiro para nossa Ordem. Em troca, e de modo a retribuir o favor, nos propusemos a conduzí-la em sua viagem, e escolhemos nosso melhor cavaleiro para protegê-la. Mesmo que não queira ir até Jerusalem, aproveite o "passeio" para conhecer algo mais além dos limites de sua cidade. Aproveite a oportunidade única de ver novas terras e conhecer novas pessoas, creio que seja isso que o seu pai quer para você e não soube se expressar. Vá até Veneza, e de lá parta até a Terra Santa se quiser, não querendo pode retornar, está bem herr Nosch? - propos Schwanden

Nosch assentiu meio contrariado e meu mestre continuou se dirigindo à Frieda:

- Uma parte de nosso pagamento será dado para Elmer administrar os custos da viagem de vocês. Farei uma carta de crédito de cerca de dez mil peças de ouro que só poderão ser trocadas em Veneza, será sua parte da herança frau Frieda, com o dinheiro em mãos faça o que você quiser, fique por lá, vá para Jerusalém ou volte para casa, a decisão será sua.

Schwanden se voltou para o burgomestre e prosseguiu:

- Já que há a possibilidade dela não voltar, as outras vinte mil moedas deverão ser pagas em um mês, já que parte delas pagamos a herança e a viagem da menina. E não aceitamos contra propostas, são estes os termos ou desfazemos o negócio agora.

- De acordo. - consentiu Nosch coçando a cabeça.

- Vamos nos servir em nosso desjejum, já que a viagem será longa. Irei guiá-los até os limites do burgo - desconversou Henrich.

Nos servimos e o clima pesado não permitiu mais diálogos. Ao completar a refeição Henrich levou Frieda para se preparar, meu mestre se retirou com Nosch para o escritório dele e eu fui auxiliar o sargento nos preparativos dos soldados para o retorno deles.

A seguir: A despedida

Trilha sonora do episódio:


 

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